quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

OS ESTATUTOS DO HOMEM

Em 1964 Thiago de Mello anunciou Os Estatutos do Homem e ainda hoje tentamos, ou apenas esperamos, que eles sejam cumpridos.

Um ano novo aí está com novos desejos, novas esperanças, um novo impulso para criar o que de realmente humano venha a se sobrepor à selvageria que vemos acontecer à nossa volta.

Seria, o momento, uma boa oportunidade para que relembrássemos a lírica proposta do poeta?

Creio que sim.

Os Estatutos do Homem

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassois em todas as janelas, que os girassois terão direito a abrir-se dentro da sombra, e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama, e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida , uso de traje branco.

Artigo XI

Fica decretado por definição que o homem é animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com rinocerontes e caminhar pelas tardes com imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.



Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir desta instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e sua morada será sempre o coração do homem.

Boas festas para todos e que o ano novo venha trazendo o NOVO que qualifica positivamente o ser humano.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Historias que ouvi contar

Nenhuma seleção de historinhas é mais interessante que a Mitologia , a grega sobretudo.Vejamos que a moderna Psicologia não dispensa seus contributos para entender melhor a alma e o comportamento humanos.

Tenho muito gosto em reler "Dafne e Apolo" e suas desventuras. Dafne foi o primeiro amor de Apolo. Outros vieram depois, e muitos. Como aconteceu?


Tendo Apolo vencido Píton , a enorme serpente, e vaidoso disto, sentia-se senhor e dono do valor das armas que usou: arco e flecha. Daí que, nada satisfeito ao ver um garoto brincando com tais armas, reagiu:

"-Que tens a fazer com tais armas mortíferas, menino insolente?" E passou um grande pito naquele que, sendo filho de Vênus, não receberia a repreensão sem reação à altura:

"-Tuas setas podem ferir todas as outras coisas, Apolo, mas as minhas podem ferir-te." E Cupido, pois era ele, o insolente, desferiu um golpe que marcou o deus com uma ferida incurável : a capacidade de amar, sem limite...
E mais, vingou-se ferindo, com seta de ponta feita com chumbo, uma belíssima garota, a ninfa Dafne pela qual Apolo se viu perdido de amores. Mas a seta malígna que feriu Dafne a tornou imune ao sentimento que devorava o coração do deus.

Muitas vezes o pai da ninfa esteve a implorar :"Filha, deves dar-me um genro, dar-me netos..."
Sob a influência da vingança do pequeno deus do Amor, a moça , temendo o casamento, implorava de volta:
"-Pai querido, concede-me esta graça! Faze com que eu não me case jamais!"
A contragosto o pai consentiu, mas prevendo um futuro nada promissor para a garota.
"-O teu próprio rosto é contrário a este voto."

Sem conhecimento do trágico vaticínio, Apolo amou-a e lutou para obtê-la... ele, oráculo de todo mundo, não foi capaz de prever o próprio infortúnio. Seguiu-a... ela fugiu a correr, mais rápida que o vento.
Ele suplicava: "-Para, filha de Peneu, não sou teu inimigo! Não fujas de mim como a ovelha foge do lobo!...É por amor que te persigo!...Sou o deus do canto e da lira. Minhas setas voam certeiras para o alvo. Mas, ah!, uma seta mais fatal que as minhas atravessou-me o coração e agora sofro de uma enfermidade que bálsamo algum pode curar!"

Quanto mais ela fugia mais encantado ele ficava...Assim voavam o deus e a virgem: ela com as asas do medo; ele com as asas do amor. Ele termina por alcançá-la. Ela em desespero invoca seu pai, o rio-deus:
"-Ajuda-me, Peneu! Abre a terra para envolver-me ou muda as minhas formas que me têm sido tão fatais!"
Algo extraordinário começou a acontecer mal ela acabou de proferir o seu apelo...(Extraordinário para os nossos conceitos atuais, mas não para uma época em que deuses manipulavam sem cerimônia tanto os sentimentos, os fatos, o tempo, a natureza e tudo que poderia ajudá-los em suas conquistas e vinganças!)...
Um torpor tomou conta do corpo de Dafne; uma leve casca passou a recobrir a sua pele, antes alva e macia; seus cabelos transformaram-se em folhas; seus braços, em galhos; seus pés fincaram-se no chão gerando raízes; seu rosto conservou, de antes, somente a beleza...agora uma viçosa planta, o loureiro, que nunca perde a graciosidade, nunca perde o verde!
Apolo abraçou-se aos galhos e tentou beijá-los...os galhos recuaram...

"-Já que não podes ser minha esposa, serás a minha planta preferida e com tuas folhas enfeitarei a minha lira e a minha aljava; e, quando os grandes conquistadores desfilarem à frente dos cortejos triunfais, serás usada como coroa para suas frontes! E tão eternamente jovem, como eu próprio, também hás de ser sempre verde e tuas folhas não envelhecerão".

Inúmeros poetas se serviram e beberam na fonte deste amor desventurado. Eu, poeta-menor, não me furto a me deixar influenciar por ele, também. Ligo-o a outra historia que ouvi contar...

Alguém que, como Carolina, da janela analisava suas circunstâncias. Ela, que um dia tinha vivido uma experiência dionisíaca, agora se encantava e se emocionava com o sofrimento do casal mitológico acima enfocado. Como toda Carolina, também esta via o tempo passar, sem perceber que pouco adianta os olhos fundos, guardando a dor de todo este mundo...isto não vai nada mudar...bem aconselhou o poeta. Lá fora as rosas continuam nascendo, mil versos são cantados só para agradar, muitos continuam sambando...Que falta para que Carolina acorde? Uma tola! Vai que morrem as rosas, a festa acaba, e aí ?

A mim, restou-me a inspiração sobre a suspiração desse povo emotivo ao extremo.

Semear...cuidar...colher
na seara de Dionísio
(para ela, opção alternativa)
desejo de sentir-se viva
Verdade dos sentidos
Mentira da mente

De resto...espera?
Esperança?
Desistência?
Ânsia?
Dormência.

Um dia (...uma noite?)
um vulto
Só um vulto
Primeiro...último...único:
Apolo perseguindo o ideal
(da janela ela observa a cena
testemunha a luta desigual)
Busca infecunda
Inútil corrida de atletas
-Ideal, somente sombra-
Dafne, apenas alcançada
desfaz-se em planta
a sedutora face.
Da janela ela vê a fuga da donzela

Apolo,
verdade da alma
Deus da música,
do canto, da lira, da cura...
nas mãos, folhas de louro
prêmio de vitória...Sem glória,
posto que satisfatória.

Ela, à distância,
acalma sua loucura...
desejo de ventura...
e chora.


Maiores esclarecimentos melhor consultar "O Livro de Ouro da Mitologia" de Thomas Bulfinch e claro, o grande Chico Buarque.

Ps. Brasileiro é tão debochado que utiliza o digno e honroso vegetal como condimento para temperar feijão! ( Minha nossa!)