By Dinah Hoisel
Um simples toque no nome de João Guimarães Rosa e vejo-me arremessada ao encontro de seus inesquecíveis personagens do Grande Sertão: Veredas.
Um romance que li com avidez. E não posso me furtar ao prazer de relê-lo muitas vezes, na busca dos tesouros encontrados nas suas mais de seiscentas páginas. Renovado desejo de rever e repensar inúmeras afirmações de valor imenso, só cabíveis na mente de um autor excepcional e que se destaca, além disso, pela originalidade do estilo.
De posse de uma bateia, eu preciso, volta e meia, recolher as pepitas de ouro escondidas naquele filão inesgotável.
Ali, o Bem e o Mal se digladiam com astúcia e fúria e, não raro, mudando de receptáculo. Sim, porque a generosidade, o companheirismo, a valentia, a fidelidade, o misticismo, o amor, a dor, a justiça, o medo, o ódio, não têm dono certo. São parte de um labirinto, ou uma teia, que envolve todos os personagens.
É o redemoinho onde O Que Não Há, o Diabo, o Coisa Ruim, o Tinhoso se farta.
O próprio Tatarana dá a receita:
" ...para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah, basta se olhar no espelho - caprichando de fazer cara de valentia; ou de ruindade!"
Escrevo, hoje, para registrar uma injustiça que ficou pouco clara no tortuoso roteiro da narração.
Fácil é identificar o maldito da história; o Hermógenes. Para ele, parece não haver salvação. Nem um gesto, nem uma palavra, nenhum sentimento que revelem um mínimo de boa vontade em favor de alguém. É o emissário da morte inglória...o próprio Demo.
Não há dúvida sobre esse fato. Ele mata...e pronto!
Não importa quem seja a vítima...cruzou o seu caminho, atrapalhando seus planos, inimigo ou inocente, o destino está selado! "Hermógenes, homem que tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros".
Não é ele que quero colocar no banco dos réus.
Meus olhos se voltam para Reinaldo, mais conhecido como Diadorim.
É. Diadorim, sério, bonito, gostando de silêncios [o que demonstra introspecção] braços alvos, e rosto corado, grandes olhos verdes, finas feições...assim o descreve Riobaldo. Um Riobaldo apaixonado, um Riobaldo torturado por um sentimento condenável, um jagunço valente, cabra macho cuja coragem fora conquistada a duras penas, nas temíveis batalhas do cangaço...Um homem tão perturbado que chega a sonhar com o objeto do seu delírio passando sob o arco-íris.
Ah! Assim estaria livre daquele feitiço, e livre para realizar o seu amor.
Diadorim sabia! Sabia o que se passava no íntimo do seu "amigo". Sabia...mas silenciava...
Escondia-se sob o manto de tenebrosa mentira.
Aquela infeliz podia ter mudado o destino dos dois.
Podia ter encontrado o momento próprio de revelar-se.
Podia, quem sabe, numa noite de lua, ter saído das águas de um riacho, como uma deusa grega, uma Afrodite do sertão, vestida da nudez reveladora...mas, não!
No meu entender, ela foi o maior algoz de toda a trama!
Em nome de uma vingança, assassinou o Amor...
Bato o martelo!
Fim do julgamento: Culpada!
Matar o Amor é tão cruel quanto matar pessoas.
O desprezo indefensável de Diadorim fez de Riobaldo o eterno sofredor que revive, com a interferência de cada novo leitor, o seu tormento, naquele lamentoso depoimento ao ouvinte fantasma.
Justifico o veredicto:
Ah! Diadorim
Foste intransigente demais.
Dia após dia,
noite após noite, viste
a dor, a tortura, a ânsia, a loucura ...
Viste o sofrer de quem te amava,
te queria, te desejava.
De quem queria te tocar,
te falar, te segurar as mãos
te dizer ternuras
se aproximar o mais possível
te servir
te acariciar...
Estar sempre ao teu lado
passar a mão em teus cabelos
te fechar os olhos
te ninar
cantar, talvez, uma canção de amigo
para que pudesses dormir ao seu abrigo.
Fazer silêncio apaixonado
para descansar este teu corpo cansado
das lutas e labutas do dia.
Olhar-te com olhar de mãe
que adora a cria.
Fazer dos braços um ninho
e do teu corpo um passarinho...
Diadorim, foste louca
em negar tanta possibilidade.
Podias ter sido feliz.
Ter conhecido a amizade
no que ela tem de mais puro.
Deixado as almas se enlaçarem,
seguirem juntas sem temer escuro,
monstros, traições, maldades,
sem temer nem mesmo o Demo...
Seguirem de tal forma iluminadas,
sendo, elas mesmas,o sol da estrada.
Ah! Diadorim...
Não há perdão para tamanho sacrifício
Não há perdão para tanto desperdício.
P.S. Claro que se a história terminasse com um happy end o romance não passaria de um folhetim semelhante a outros tantos.
Maria Deodorina criando filhinhos - um a cada ano - criando galinhas, plantando hortaliças e flores, enquanto Riobaldo - não mais Tatarana - deitado numa rede, cofiando o bigode, apreciaria o grande plantel de animais ultra selecionados que amealhara com seu trabalho, ajudado pela polpuda herança e pelos amigos influentes.
Felizmente, J.G.Rosa não me pediu opinião.